Direito Costumeiro em Timor-Leste
Direito Costumeiro em Timor-Leste Visto Numa Perspectiva dos Direitos
Humanos
A
Constituição da República Democrática de Timor-Leste dá um reconhecimento
especial sobre a existência das normas e costumes locais. Diz o artigo 2 número
4 “ O Estado reconhece e valoriza as normas e usos costumeiros de Timor-Leste
que não contrariem a Constituição e a legislação que trate especialmente do
direito costumeiro”.
Pela interpretação da constituição, vimos que
é uma obrigação do estado timorense criar um mecanismo da integração do direito
costumeiro no ordenamento jurídico estadual, porque por um lado, sem um
mecanismo concreto do estado na aplicação desse artigo, o estado timorense está
cair na violação da constituição e por outro num estado de direito como
Timor-Leste deve salvaguardar a garantia da certeza jurídica dentro da
população mesmo que a garantia da certeza jurídica num estado de direito cabe
apenas aos tribunais estaduais[1].
É
porque a constituição timorense reconhece e valoriza o direito costumeiro então
o estado timorense deve criar uma legislação para que regulariza ou define a
clara actuação entre o direito costumeiro e o direito formal-estadual dentro da
sociedade. Partilhamos
a ideia de Laura Grenfell enquanto diz
que “ East Timor’s government needs to enact legislation clarifying the
relationship between the two systems of law and setting out some judicial
guidelines so as to remedy the present confusion in East Timor’s courts as to
wheter and when local law can be used”[2].
Por
parte do governo timorense há essa preocupação para recolher dados sobre o
direito costumeiro de Timor-Leste. A Patrícia Jerónimo defende no seu artigo, intitulado
Estado de Direito e Justiça Tradicional Ensaios para um equilíbrio em
Timor-Leste, essa tentativa do governo timorense em 2009 para fazer um
levantamento sobre Direito Costumeiro e pretende com isto para ver como o
direito costumeiro possa resolver os problemas de âmbito menor[3].
Essa
levantamento é muito importante vimos que há múltiplos mecanismos de fazer
justiça dentro da comunidade. Pelo menos com isto o governo timorense possa
controlar os mecanismos de aplicação de justiça tradicional que não vão
contrariar com os princípios gerais de direitos humanos ou qualquer princípio
fundamental do Estado de Direito Democrático de Timor-Leste.
Vimos
que o reconhecimento do governo timorense limite-se apenas aos problemas
menores. Aliás, essa ideia também podemos verificar na resolução dos conflictos
não de crimes graves, durante o mandato da CAVR, na comunidade pela sua
comissão distrital[4].
Essa
decisão é de louvor porque ajudou facilitar a integração na comunidade os
antigos pro-autonomistas e estabelecer de novo uma boa harmonia e paz na comunidade.
Além disso, também ajudou a diminuir o peso do estado que depois só tratou
sobre a política que o estado toma em relação com os crimes graves contra a
humanidade sem preocupar muito de tratar os assuntos menores que os líderes da
comunidade possam tratar. O sucesso da comissão distrital da CAVR ao utilizar
os mecanismos tradicionais de resolução dos conflictos pode servir como exemplo
de quanto importante e eficaz o uso do direito costumeiro na comunidade.
Timor-Leste,
como um estado post-conflicto e que veio de uma história de guerras há séculos
e onde existe muitos grupos étnicos-linguísticos que possam pôr em causa a
estabilidade do país, onde a população não tem muito acesso ao sistema estadual
da justiça, precisa de um mecanismo adequado para tratar questões de justiça e
de resolução dos conflictos dentro da comunidade grass-root. Como diz Daniel
Schroeter Simião que “existe uma baixa penetração dos mecanismos estatais de
justiça (polícia, ministério público, defensória pública e tribunais) junto à
população em todos os Distritos”[5].
O
que defende claramente também essa situação pela Patrícia no mesmo artigo
dizendo “ Cedo se verificou, porém, ser muito limitado o real impacto das
reformas empreendidas por via legislativa junto das populações, que continuaram
a reger as suas vidas pelas normas costumeiras (por vezes, em manifesta
violação do Direito oficial) e a recorrer às instancias tradicionais para a
resolução dos conflitos surgidos no seio das comunidades”. Por isso, não se
admira muito que com esta dificuldade de difícil acesso ao sistema estadual de
justiça a população muitas vezes recorre a justiça tradicional como meios mais
rápidos e acessíveis para resolver os conflictos existentes.
A
Justiça tradicional não tem como objectivo apenas resolver os conflictos dos
interessados mas mais do que resolver os conflictos visto também como um
mecanismo para garantir a existência da harmonia da comunidade e muitas vezes o
que a população procura na justiça tradicional é isso mesmo a restauração da harmonia
dentro da comunidade; a restauração da perturbação da ordem social da
comunidade. Tanja Hohe e
Rod Nixon dizem que “local law is mainly about the replacement of values, to
re-establish their correct exchange and thus reinforce the socio-cosmic order”.
Os dois sublinham concretamente que o direito local ou
tradicional é para “ [harmony in the cosmos and for community members is
insured again]”[6]. Enquanto
o direito estadual de Timor-Leste, hoje em dia, como fonte de origem ocidental,
na qual concentra na protecção e na valorização dos direitos humanos de cada
individuo, o indivíduo como valor em si mesmo numa perspectiva de Kant, visto
numa perspectiva ocidental de individualidade, o direito costumeiro de
Timor-Leste procura acentuar no interesse comum da comunidade. O interesse da
comunidade é maior de todos os interesses individuais isolados. É por isso que
qualquer decisão do tribunal do estado pôr em primeiro lugar o interesse da
vítima como individua e centro de atenção. Enquanto a decisão do “tribunal” da
justiça tradicional procura em primeiro lugar a harmonização da comunidade
porque qualquer problema é visto como uma ruptura da harmonia da comunidade. O
problema é do interesse de todos por uma questão da harmonia da comunidade. O
problema não é isolado, não apenas a vítima e o acusado mas é do interesse da
comunidade em nome da harmonia da comunidade e além disso, a participação da
comunidade na resolução dos conflictos é activa.
Mesmo
que o direito costumeiro tem um papel muito importante na vida dos timorenses
na comunidade rural, o reconhecimento do direito costumeiro é confuso dentro do
estado de Timor-Leste. Por um lado, a Constituição da República reconhece e
valoriza o direito costumeiro e por outro lado o parlamento nacional fez uma
lei número 10/2003, de 10 de Dezembro para impedir a sua valorização. O que nos
parece que essa lei não está em harmonia com a Constituição, a lei principal de
Timor-Leste.
Essa
realidade, para nós, mostra que o estado de Timor-Leste está com dúvida em
relação com a importância do direito costumeiro no processo do desenvolvimento
do país (State Building). Mais do que a preocupação explícita, que consta na
lei, podemos pensar também (apenas como uma possibilidade) que uma das razões
podem ser a preocupação da existência no direito costumeiro as práticas que
podem pôr em causa a falta do respeito pela dignidade da pessoa humana,
liberdade e a igualdade de género que as vezes acontecem com a aplicação do
direito costumeiro na sociedade timorense.
Pensamos
que, para evitar essa tal preocupação da arbitrariedade de certos direitos
costumeiros, devemos fazer uma convergência do Direito Costumeiro para o
ordenamento jurídico formal estadual em harmonia sempre com a Constituição de
Timor-Leste. Todo o acto de Direito Costumeiro que contraria a Constituição
deve ser proibido. Porque a Constituição já prevê o respeito pela dignidade da
pessoa humana (artigo 1 número 1), a garantia e a promoção dos direitos e
liberdades fundamentais dos cidadãos e o respeito pelos princípios do Estado de
direito democrático (artigo 6 alínea b) outros princípios para a defesa dos
direitos fundamentais como por exemplo em relação com direitos, liberdades e
garantias (artigos 29 e seguintes) e direitos económicos, socias e culturais
(artigos 50 e seguintes) e além disso a Constituição também faz respeitar e dá
supremacia do Direito Internacional perante quaisquer leis ordinárias do
Estado. Porque segundo o artigo 9 número 3 da Constituição, toda a lei formal
estadual será inválida caso contrariar com as convenções, tratados e acordos
internacionais recebidos na ordem jurídica interna.
Este
reconhecimento mostra a supremacia das convenções, tratados e acordos
internacionais (recebidos na ordem jurídica interna enquanto completando o
processo exigido no artigo 9 número 2 da CRDTL) perante as leis ordinárias do
estado. Devemos ter, então, em atenção que qualquer direito costumeiro que
converge no direito formal estadual deve estar sempre em harmonia com as
convenções, tratados e acordos internacionais que o estado de Timor-Leste já
ratificou.
Com
toda a certeza e seguramente podemos dizer que a Constituição de Timor-Leste
está desempenhar um papel importante para proibir todo o acto que viola
quisquer direitos fundamentais do cidadão.
Por
isso, o Estado de Timor-Leste tem um compromisso de, enquanto fazer legislação
e ordenar sobre o Direito Costumeiro, tirar de fora e proibir todo o acto que
contradiz com a Constituição. Por exemplo na resolução do crime na justiça
tradicional devemos ter em consideração o princípio da legalidade no âmbito
jurídico-penal na sua máxima amplitude, no plano substantivo e também no âmbito
processual penal e deve garantir o direito à paz jurídica por parte de arguido,
objecto de sentença com trânsito julgado como também o direito a indemnização
por condenação injusta na aplicação da lei criminal segundo artigo 31 da
Constituição. Devemos banir qualquer acto, na resolução do crime na justiça
tradicional, que possa pôr em causa este artigo.
Além
disso, no direito costumeiro existe pena da morte ou tratamento desumanos e
degradantes aos culpados e isso não pode ser aceite e proibida a luz da
Convenção Contra Tortura das Nações Unidas que Timor-Leste já ratificou. Ou
mesmo em relação com as mulheres na qual em sociedade timorense há falta de
respeito ou existe a discriminação das mulheres no direito costumeiro então
essa discriminação é proibida também segundo a Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres que já foi ratificada por
Timor-Leste. Ou por exemplo no costume timorense que dá mais prioridade aos
filhos para a educação formal do que as filhas então esse acto também devemos
proibir a luz do artigo 4 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Todos
estes actos acima mencionados também violam a Declaraçao Universal dos Direitos
Humanos em relação com os artigos 1 (Todo o homem tem o direito de se tornar
humano e de ser tratado como tal) , 2 (Todo o ser humano tem direito à vida), 3
(todo o ser humano tem direito independência) e 4 (Todo o ser humano tem
direito a saber). Qualquer acto do Direito Costumeiro que, pôr em causa os
Direitos Humanos deve ser banido também porque a Constituição de Timor-Leste
prevê no seu artigo 23 que “Os direitos fundamentais consagrados na Constituição
não excluem quaisquer outros constantes da lei e devem ser interpretados em
consonância com a Declaração Universal dos Direitos Humanos”. A questão dos
Direitos Humanos segundo artigo 23 torna como um guia orientador na elaboração
e na interpretação das leis do Estado de Direito de Timor-Leste incluindo na
futura elaboração e interpretação das leis que regulam sobre o direito
costumeiro (artigo 2 número 4 segunda parte).
Vimos
que há valorização por parte da Comunidade Internacional em relação com o direito
costumeiro. Encontramos isso na Declaração dos princípios básicos de justiça
relativos às vítimas da criminalidade e de abuso de poder que foi adoptada em
1985 na qual a Assembleia-Geral das Nações Unidas admitiu o uso do Direito
Costumeiro ou práticas autóctones da justiça sempre em favor a vítima.
Incluindo também a valorização por parte do Conselho Económico e Social das
Nações Unidas com a resolução 2002/12 de 24 de Julho de 2002 que fala sobre
justiça restaurativa em matéria criminal. O Comité de Direitos Humanos também
valoriza a legitimidade dos tribunais baseado no Direito Costumeiro para fazer
sentenças obrigatórias desde as matérias só em relação com matérias criminais e
civis menores(que veio coincidir com a intenção do governo timorense acima
mencionada).
Podemos
afirmar que a aplicação do direito costumeiro deve ser a luz da Constituição.
Logo, na aplicação do Direito Costumeiro em Timor-Leste, segundo o artigo 2 da
Constituição, segue um princípio de praeter
legem e não contra legem.
Vimos
na realidade que tanto o direito costumeiro como o direito formal estadual tem
o mesmo objectivo que é resolver os conflictos, assegurar a estabilidade ou
restabelecer a harmonia e regularizar a vida da população no processo do
desenvolvimento do país. Estes objectivos, podemos considerar como sistema de
controlo social de Direito segundo a perspectiva de Atienza[7].
Ele diz que “a actividade do controlo parece ter por objecto a conduta em geral
dos membros da sociedade, enquanto que, num sentido mais restrito, o controlo
social se limite aos desvios de conduta”[8].
Partir
dessa função do direito como controlo social devemos procurar como fazer uma
boa convergência entre o direito costumeiro e o direito formal estadual para o
bem da sociedade como uma contribuição desse processo de desenvolvimento e de
consolidação do Estado Democrático de Direito. Porque o direito costumeiro já
nasce com a população. Desvalorizar o direito costumeiro significa também
desvalorizar o património cultural de um povo e que isso vai contrariar artigo
5 alínea g da CRDTL e a Convenção sobre a protecção e a promoção da diversidade
das expressões culturais e que como já citamos em cima que qualquer elaboração
e interpretação do direito costumeiro deve ser a luz dos direitos humanos que veio
confirmar com artigo 2 número 1 dessa Convenção.
Se
hoje ainda existe essa prática de direito costumeiro na sociedade timorense
significa que pelo menos, entre a população rural, esse direito costumeiro tem
sentido da sua importância e da sua eficácia aplicação, acessível nos olhos da
população local na regulação da vida da comunidade[9].
Agora, o que nós devemos ter em atenção na situação do pluralismo jurídico como
em Timor-Leste para que qualquer direito costumeiro não contrariar com a lei
formal estadual (incluindo o direito internacional reconhecido na ordem
jurídica interna do estado); assegurar a reparação dos danos das vítimas; a
recuperação da ordem social da comunidade de base como parte do sistema de
justiça retributiva tradicional da comunidade e ao mesmo tempo devemos também
atribuir uma “punição” adequada aos culpados para que não voltarem praticar os
crimes no futuro.
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[23.07.2014].
*Antigo estudante da Escola de Direito da Universidade do Minho do Mestrado em Direitos Humanos. Iha interese iha área sira hanesan Judisiáriu, Direito Internacional dos Direitos Humanos, Direitos Fundamentais, Direito do Ambiente, Direitos Humanos e Biomedicina. Iha relasaun di’ak ho Escola de Direito da Universidade do Minho. Agora daudaun hanesan Professor da História, Cultura e Língua Timorense no História e Cultura Portuguesa iha Instituto São João de Brito – Kasait, Likisa. Bele kontaktu iha 76094252.
[1] Cf. Patrícia JERÓNIMO, Estado de Direito e
Justiça Tradicional Ensaios para um equilíbrio em Timor-Leste, in Estudos em
Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, Almedina, 2001, p. 97.
[2] Laura GRENFELL, Legal
Pluralism and the rule of Law in Timor-Leste, in Leiden Journal of
International Law, 2006, n.º 19, p. 322.
[5] Daniel Schroeter SIMIÃO, Igualdade jurídica e
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modernização timorense, s/d, texto disponível em http://tlstudies.org/pdfs/chp_13.pdf [23.07.2014].
[7] Manuel ATIENZA, O sentido do Direito, 2014, Escolar Editora, p. 173.
[8] Ibidem,
p. 174.
[9] Cf. António Carlos Ozório NUNES, Justiça
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texto disponível em http://www.revistajustitia.com.br/revistas/55a6y2.pdf [23.07.2014].
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